Circulam pelas redes sociais mensagens em áudio e vídeo que afirmam que as vacinas contra a Covid-19 têm um chip em forma líquida que vem com uma codificação que traz uma leitura para inteligência artificial, permitindo assim controlar os vacinados. Diz ainda que “é como se fosse um chip, mas de forma líquida, que é o plasma.” É #FAKE.

 — Foto: G1

A mensagem falsa diz, na íntegra: “O plasma dessa vacina, que é o liquido, vem com uma codificação que traz uma leitura para inteligência artificial, então eles têm o nosso controle através disso. É como se fosse um chip, mas de forma líquida, que é o plasma.”

Especialistas nas áreas de biomedicina, inteligência artificial e microeletrônica refutaram a tese que embasa as mensagens falsas com argumentos técnicos.

“Obviamente é falsa essa mensagem. Eu sou um especialista na área de projeto de chip. Sei exatamente onde a tecnologia se encontra, o que ela pode e o que ela não pode fazer. Não existe essa coisa hoje de chip líquido”, afirma Ney Laert Vilar Calazans, doutor na área de microeletrônica na Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, professor titular na Pontificia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) há mais de três décadas, graduado em engenharia e pós-graduado em engenharia elétrica e ciência da computação.

“Existem estudos que tentam fazer a evolução dos chips, que hoje são feitos de silício. Eles podem ser muito pequenos, podem ser colocados embaixo de uma unha sem ninguém ver e são chips com alguma complexidade. A gente está chegando no limite dessa tecnologia de silício. Então o pessoal está fazendo pesquisas e uma das pesquisas seria usar uma tecnologia similar à de organismos biológicos, tipo proteínas e outras coisas para fazer processamento de informação, mas estamos muito longe disso. Não existe como você ter um chip líquido hoje, uma proteína capaz de prover o controle do corpo de alguém.”

A presidente da Sociedade Brasileira de Microeletrônica, Linnyer Beatrys Ruiz Aylon afirma que a pergunta sobre chip líquido é a que mais tem recebido. “Apesar de todo desenvolvimento que temos conseguido com o silício e de produzirmos quintilhões de dispositivos no mundo, não existem chips líquidos ou solúveis em plasma ou sangue e tampouco chips que possam estar “escondidos” em vacinas. Em nosso conhecimento, isso não é possível. Fake news”, diz

Se não existe chip líquido, tampouco haveria chance de ele ficar no corpo por muito tempo, como explica Mateus Falco, biomédico, mestre em microbiologia pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) e divulgador científico pela Rede Análise Covid-19.

“Se existisse mesmo uma fórmula capaz de entrar na corrente sanguínea e circular indefinidamente, essa avaliação teria fundamento, mas nosso corpo trabalha o tempo todo purificando e excretando substâncias que não tem mais função, um “plasma” como alegado na desinformação não duraria mais de uma hora no nosso corpo, pois seria filtrado pelos rins e iria para o esgoto, para desânimo de quem divulga essa desinformação”, afirma.

Mas do que são feitas as vacinas? Falco explica que as vacinas vêm em um líquido estéril como o soro fisiológico, o mesmo soro fisiológico comprado na farmácia, e que algumas usam água destilada.

Existem ainda vacinas que são produzidas em forma de pó liofilizado, como a vacina tríplice viral para sarampo, caxumba e rubéola. A liofilização facilita o transporte, distribuição e armazenamento da vacina, e antes da aplicação elas são diluidas nesse mesmo soro fisiológico para facilitar a aplicação. Outras vacinas são tomadas em forma de gotas orais como a da poliomielite. Existe um estudo para produzir vacina em formato de nebulização nasal contra o SARS-CoV-2, como se fosse um spray aplicado no nariz.

“Então, esse soro fisiológico é o líquido que contém a vacina e não o plasma como afirmado na alegação”, diz.

Falco diz que o tratamento com plasma de pacientes que já tiveram COVID-19 é uma técnica que usa o anticorpo de pacientes recuperados da COVID-19 para neutralizar o vírus. Ele é aplicado diretamente no paciente infectado com o coronavírus para impedir que o vírus se espalhe e cause a doença. Essa técnica é muito parecida com o tratamento de picada de cobra.

“Quando levamos uma picada de cobra uma vacina não conseguira agir rapidamente para estimular o corpo na produção de anticorpos, devido a urgência da situação, aplica-se o soro (plasma) que contém os anticorpos para combater o veneno. O processo de produção do soro é feito em cavalos, e depois o soro é tratado restando apenas a porção de interesse que é o anticorpo.”

Líder da plataforma tecnológica de Inteligência Artificial do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPQD), Guilherme Fôlego afirma que a teoria não tem embasamento suficiente, não se desenvolve o suficiente sobre inteligência artificial para que se possa argumentar. Para ele, a expressão foi usada para chamar atenção.

“A inteligência artificial trabalha com reconhecimento de padrões. Como o reconhecimento de padrões dentro de um plasma ajudaria a controlar alguém? Eu acho até meio esquisito. Ele fala de inteligência artificial, mas é só uma palavra chave jogada e não tem embasamento, não diz como ou porque a inteligência artificial é usada. Estão falando que o plasma é um chip em forma líquida, eu nunca ouvi falar disso. Eu ouvi o áudio todo, a pessoa cita inteligência artificial mais de uma vez, mas eu tentei identificar nas vezes que ela cita inteligência artificial se ela fala como ela é usada ou por que ela é usada em que contexto e não consegui identificar isso, para mim são apenas palavras jogadas para chamar atenção”, diz.

Fôlego afirma que a inteligência artificial está desenvolvida o suficiente para, por exemplo, reconhecer a impressão digital e desbloquear o celular. Por outro lado, ainda tropeça no reconhecimento de padrões de face, em que funciona com ressalvas.

“Teve até um estudo que pegou diversos políticos americanos e fez uma verificação de face com pessoas procuradas pela polícia nos Estados Unidos e deu vários “casamentos”, como se os políticos fossem fugitivos da polícia”, lembra. “Em alguns casos ela está bem desenvolvida e em outros não. Teria que ver no plasma se existe tecnologia para isso. Eu desconheço”, diz. “Não vi nada de identificação de pessoas através de plasma ou através de sangue usando a inteligência artificial.”

Ele também ignora que haja a tal Inteligência Artificial Internacional citada na mensagem falsa. “Uma entidade chamada Inteligência Artificial Internacional eu desconheço”, diz. “Existem vários grupos que são internacionais e que tratam de inteligência artificial, mas esse chamado Inteligência Artificial Internacional em específico, eu desconheço.”

Fôlego pondera ainda que se o plasma possuísse uma identificação e pudesse funcionar como um chip então não seria necessário usar inteligência artificial para fazer qualquer malefício. “O fato de existir inteligência artificial nessa divulgação não vai a favor e nem contra toda essa situação que é criada, porque não é a inteligência artificial que vai atuar em prol da teoria”, raciocina.

A mensagem falsa junta outros conceitos, como o de que o coronavírus é 50% H1N1 e 50% HIV”, rebatido por Falco.

“Sobre a alegação de que o novo coronavírus tem metade do material genético igual ao do vírus HIV e outra do H1N1 esse é um ponto que precisa ficar claro. A comparação de genomas, todo o material genético dos organismos, não pode ser feita de modo direto como mencionado na desinformação. Não podemos relacionar diretamente as comparações. Muitos organismos tem partes do genoma compartilhadas, isso não quer dizer que seja igual ou que tenham a mesma origem genética. Essa comparação é feita por meio de bioinformática, colocando lado a lado os genomas e analisando os resultados. O SARS-CoV-2 não apresenta região relacionado com a sequência de HIV, então nem podemos falar em valores comparativos como 50% de material igual ao HIV, está muito longe disso. Sobre a metade de H1N1 não existe essa comparação entre os genomas, portanto não tem essa metade como alegado, é mera especulação sem base científica”, diz.