ATENÇÃO: esta reportagem contém vídeo com imagens fortes.

A COMERCIANTE Beatriz de Moura Silva de Oliveira chegou por volta das 13h com a filha na padaria que administra em Itajaí, no interior de Santa Catarina. Encontrou um homem estirado no chão e algemado na porta da panificadora. Era Jadson José da Silva, preso em flagrante com cinco petecas de cocaína pelos policiais Adair de Oliveira e Khaique Ferreira da Silva.

O Intercept teve acesso com exclusividade à gravação da ocorrência, feita em 3 de dezembro de 2019 por uma câmera presa ao uniforme do soldado Adair. Quando o vídeo começa, os PMs Adair e Khaique conversam tranquilamente com Jadson, já imobilizado. Adair demonstra satisfação com o sucesso da abordagem: “Tu já tem mais passagens por tráfico, né?”, pergunta a Jadson. “Agora tu vai ficar [preso], coruja!”, comemora.

Fazia quatro meses que as câmeras acopladas à roupa haviam sido incorporadas à rotina dos policiais que atuam na linha de frente em Santa Catarina. O projeto, que contou com tecnologia do Instituto Igarapé e da Universidade de Warwick, do Reino Unido, tem entre seus objetivos melhorar a investigação de crimes e a fiscalização do trabalho policial.

Os agentes mantiveram Jadson na frente da padaria por alguns minutos enquanto encerravam a ocorrência. Beatriz então abordou os PMs, lembrando que estavam atrapalhando a entrada de clientes. A conversa ainda era normal até Beatriz tentar explicar seu ponto de vista. Antes de ela conseguir falar, o soldado Adair sobe o tom de voz e indaga: “acha ruim o trabalho da polícia, senhora?”. “Eu não estou achando que está ruim. Não coloque palavras na minha boca”, ela responde, com calma. “Só um minutinho, deixa eu falar”, o policial retruca com rispidez e voz alta algumas vezes. Com a câmera no uniforme, não conseguimos ver o rosto de Adair

O que deveria ser um diálogo normal rapidamente se transforma em uma cena de terror.

Enquanto Beatriz e Adair discutiam, o PM Khaique entrou na padaria e foi para trás do balcão, onde estava o marido de Beatriz, Antonio Cesar de Oliveira, que administra a padaria com ela. O policial pediu os documentos do comerciante aos gritos e começou a puxá-lo, demonstrando irritação. “Você tem que ter autorização para entrar aqui”, Beatriz avisou. Antônio apontou para uma funcionária e disse para ela ligar para a polícia. Neste momento, Khaique imobilizou o comerciante pelas costas e o arrastou para fora da padaria. Antônio não ofereceu reação. Beatriz tentou impedir e lembrou que ambos são trabalhadores. Adair respondeu dizendo que a ação está sendo filmada.


No boletim de ocorrência que registraram mais tarde naquele dia, os PMs relataram que Antônio “investiu com socos contra o policial Khaique Ferreira”, algo que não aparece na imagem da câmera policial. Meses depois, em maio, em depoimento à Corregedoria da PM no inquérito policial militar que apura a conduta dos dois soldados na ação, a história mudou. O PM fala mais sobre a briga entre o policial Adair e Beatriz do que sobre sua abordagem a Antônio. Ele diz apenas que houve “luta corporal” entre ele e o comerciante.

Enquanto o comerciante era levado para fora da padaria, Beatriz esticou o braço à esquerda do PM Adair, e o policial a empurrou com a mão no pescoço. Ela reagiu afastando a mão de Adair. O policial respondeu com violência, e os dois começaram a brigar. Em poucos segundos, o soldado derrubou e mulher e passou a segurá-la pelos cabelos. Enquanto Adair pegava Beatriz pelo cabelo, ela ficava com o rosto voltado para o chão, mas tentava reagir às agressões do policial, batendo em suas mãos. A mulher estava imobilizada, e o PM deu voz de prisão para Beatriz.

Nos depoimentos, os policiais alegaram que Beatriz teria tentado pegar a arma do policial, o que é impossível confirmar pela imagem. Uma funcionária da padaria que presenciou a cena, grávida à época, disse que se aproximou dos dois para pedir calma ao PM e ele espirrou spray de pimenta em sua direção.

O soldado Adair faz uso então do que o inquérito policial militar classificou como “uso progressivo da força”. Ela estava imobilizada e já declarada presa pelo policial, mas, mesmo assim, ele começou a estrangular Beatriz. “Põe o braço para trás, eu vou te apagar”, diz o PM. A câmera mostra Beatriz com o rosto roxo e inchado, por causa da falta de ar, e espumando pela boca. Sua filha, de 13 anos, tentava conter o policial. Segurava a mão que estrangulava a mãe e pedia “calma, por favor”. Adair asfixiou Beatriz por 38 segundos.

Na versão do PM Khaique à corregedoria, a adolescente pedia “para a mãe se acalmar quando agredia o soldado Adair”. As imagens deixam claro que a mulher estava imobilizada e que era o policial quem agredia Beatriz.

Adair, ainda com a mão no pescoço de Beatriz, jogou um jato de spray de pimenta a poucos centímetros do rosto da comerciante por quatro segundos – a recomendação é usar a arma com uma distância mínima de um metro.

Quando a comerciante parecia não esboçar mais nenhuma reação, o PM Adair a levantou, a colocou de volta no chão de bruços e a algemou. Enquanto isso, o parceiro dele, o PM Khaique, dizia à Beatriz: “Tu vai fazer força? Tu acha que a polícia é o que, ô sua idiota”. Antônio estava deitado de bruços ao seu lado. Em depoimento, ele relatou que também foi estrangulado e que perdeu a consciência por alguns instantes. A gravação termina às 13h28.

O PM Adair também prestou depoimento à corregedoria. Na época, disse que Beatriz tentou intervir na detenção de Antônio e que teria “ido pra cima do declarante com violência, desferindo tapas e tentando sacar a arma longa, uma CTT calibre .40”. Em setembro, em um terceiro depoimento, o PM disse que a comerciante o puxou pelo colete e que, por isso, ele se desequilibrou e “foi ao solo junto com ela”. Cada depoimento traz uma versão diferente para as imagens que mostram a comerciante sendo estrangulada pelos 38 excruciantes segundos.

Após a cena, Beatriz e o marido foram detidos. No boletim de ocorrência registrado na delegacia, a dupla de policiais militares acusou a mulher de tráfico de drogas e associação ao tráfico, além de desacato, desobediência e resistência à prisão. Para não dormir na cadeia, ela teve que pagar R$ 998 de fiança. Seu marido, Antônio, foi acusado pelos PMs dos mesmos crimes, exceto associação ao tráfico. Jadson Silva, que além das cinco trouxinhas de cocaína carregava R$ 77, respondeu apenas pelo crime de tráfico.

No registro da ocorrência feito pelos PMs naquele dia não há qualquer registro de provas ou antecedentes que possam comprovar qualquer ligação do casal de comerciantes com o tráfico de drogas. Ainda segundo os policiais, “logo em seguida” à prisão de Jadson, no início da ocorrência, o casal se aproximou e os chamou de “vermes”. Os PMs parecem esquecer a existência da gravação.

Fonte: The Intercept Brasil